Conto: “Uma Morte” (traduzido)

Longos dias e belas noites Pistoleiros! Como estão? O blog anda um pouco parado ultimamente, por motivos pessoais, mas em breve voltaremos à normalidade. A novidade é que eu andei trabalhando, nos últimos dois dias, na tradução, revisão e adaptação do novo conto de Stephen King. Publicado recentemente no newyorker.com, “A Death” (“Uma Morte”, em tradução livre) conta a história de Jim Trusdale, um homem condenado à forca por um crime que o Xerife Barclay não tem certeza se ele realmente cometeu. Peço que relevem, caso haja um ou outro errinho, (é minha primeira tentativa de incursão ao fascinante universo da tradução) e espero que gostem. Estou disponibilizando o texto na íntegra, no corpo do post, e neste link, caso prefiram ler em pdf. Boa leitura!

Atualizado: Pouco antes de publicar o conto, Stephen King concedeu uma breve entrevista à Cressida Leyshon, do New Yorker (confira o link original aqui), onde ele falou um pouco mais sobre a história. Atualizei o post com a tradução da entrevista, que segue abaixo (atenção: contém spoilers. Recomendo a leitura após o conto).

***

Sua história da edição desta semana, “Uma Morte”, é sobre o assassinato de uma garotinha e do homem suspeito de matá-la. A história começa com a prisão de Jim Trusdale. Você sabia desde o início de qual crime ele seria acusado?

Eu sabia que ele seria acusado pelo assassinato de uma garotinha após ter roubado seu dólar de aniversário, mas era tudo o que eu sabia.

A história se passa nos Vales Negros da Dakota, pouco antes do território ser integrado aos Estados Unidos, em 1889. Porque você quis situar a história neste lugar e neste tempo?

Eu quis situar a história em um lugar onde a justiça fosse brutal e rápida. Dessa forma, a história tem uma dívida com o grande romance de Velho Oeste de Walter Van Tilburg, “The Ox-Bow incident” (o livro deu origem ao filme que recebeu o título de “Consciências Mortas”, no Brasil – N.T)

A história gira em torno da questão da culpa. Trusdale proclama repetidamente sua inocência. A maioria dos cidadãos da cidade acreditam que ele é culpado, só o Xerife acredita que um  homem  inocente pode estar caminhando de encontro à sua morte. Você tinha alguma ideia clara sobre a inocência ou culpa dele quando começou a história?

Eu estava mais interessado na progressão do Xerife de uma pressuposta culpa até uma relutante crença na inocência de Trusdale. Se Jim Trusdale realmente matou Rebecca Cline era algo menos interessante para mim do que a mudança de concepção de Barclay.

A forca é armada para Trusdale antes que o veredito fosse dado. Como escritor, como é despachar um homem para sua morte? Você não quer sempre deixar um personagem escapar de sua sentença de morte?”

Ver alguém ser enforcado, mesmo alguém fictício, nunca é agradável. Mas, só porque eu tinha que viver com Trusdale por um curto período de tempo, foi mais fácil vê-lo ser executado do que ver John Coffey ir para a cadeira elétrica em “À espera de um milagre”. Isso foi em parte porque eu sabia que Coffey era inocente, e por outro lado porque eu vivi com Coffey pelos dezesseis durante os quais eu escrevi o livro. Ele se tornou um amigo. Jim Trusdale era um mero conhecido.

“Uma morte” aparecerá nessa temporada em uma nova coletânea de suas histórias, “O bazar de pesadelos” (“The Bazaar of Bad Dreams” no original). No verão, você estará publicará “Finders Keepers” (“Achado não é roubado”, em tradução livre), o segundo romance de uma trilogia que se iniciou com “Mr. Mercedes”. Você disse que “Mr. Mercedes” começou com uma ideia para um conto. Como, ao longo do processo da escrita, você sabe que a história pode superar seus limites? E quando o inverso acontece?

Eu tive muitos contos que cresceram até se transformarem em romances, mas eu nunca tive um romance que se transformou em um conto, ou em uma novela. Às vezes, a história na qual estou trabalhando começa a desabrochar – é o único jeito que eu consigo descrever. O grande romancista de ficção cientifica Alfred Bester tinha um ditado: “O Livro é o chefe.” É a verdade de toda ficção, eu acho. Há um processo agindo em seu subconsciente ou alguma outra coisa parecida – uma musa ditando, se você preferir assim – e é melhor deixar que a força imaginativa faça seu trabalho. Uma história como “Uma Morte” é um prazer para mim, porque ela tem um tipo de compreensão doce e não forçada.

Uma Morte

Stephen King

Tradução e revisão: Edilton Nunes

Jim Trusdale tinha uma cabana no lado oeste do rancho de plantio do seu pai, e lá era onde ele estava quando o Xerife Barclay e meia dúzia dos deputados empossados encontraram ele, sentado em uma cadeira ao lado do fogão frio, vestindo um casaco imundo e lendo uma publicação antiga do “Black Hills Pioneer” sob a luz de uma lanterna. Olhava para ele displicentemente.

Xerife Barclay parou na porta da frente, quase a preenchendo. Ele estava segurando sua própria lanterna. “Venha cá fora, Jim, e faça isso com as mãos para o alto. Eu ainda não saquei minha pistola e não quero fazê-lo.”

Trusdale saiu. Ele ainda tinha o jornal em uma de suas mãos erguidas. Ele parou lá olhando para o Xerife com seus insípidos olhos cinza. O xerife olhou para trás. O mesmo aconteceu com os outros, quatro no estabulo e dois no banco de uma carroça velha com “Funerária Hines” pintado no lado com letras amarelo-desbotadas.

“Eu notei que você não perguntou por que estamos aqui,” disse o Xerife Barclay.
“Por que você está aqui, Xerife?”
“Onde está o seu chapéu, Jim?”

Trusdale levou a mão que não estava segurando o jornal até a cabeça, como que para sentir seu chapéu, que tinha o marrom das planícies, e não estava lá.

“Em seu lugar, não é?” o Xerife perguntou. Uma brisa gelada subiu, soprando os cascos dos cavalos e transpassando a grama em uma onda que corria para o sul.
“Não,” Trusdale disse. “Eu não acredito nisso.”
“Onde então?”
“Eu talvez o tenha perdido”
“Você precisa subir na parte de trás da carroça,” disse o Xerife.
“Eu não quero montar em nenhuma carroça de funeral,” Trusdale disse. “Isso é má sorte.”
“Você está com azar de qualquer jeito,” um dos homens disse. “Você está pintado com ele. Entre!”

Trusdale foi para trás da carroça e subiu. A brisa passou de novo, forte, e ele levantou a gola de seu casaco.

Os dois homens que estavam sentados na carroça desceram e pararam um em cada lado dele. Um sacou sua arma; o outro não. Trusdale conhecia seus rostos, mas não seus nomes. Eles eram homens da cidade. O xerife e os outros quatro entraram em sua cabana. Um deles era Hines, o coveiro. Eles ficaram lá por um tempo. Eles abriram o fogão e cavaram através das cinzas. Por fim, eles saíram.

“Sem chapéu”, disse o Xerife Barclay.” E nós gostaríamos de tê-lo visto. É um maldito chapéu grande. Nada a dizer sobre isso?”
“É péssimo ter perdido ele. Meu pai deu ele para mim quando ele ainda estava em sua cabeça.”
“Onde está ele, então?”
“Eu já disse, eu devo tê-lo perdido. Ou deve ter sido roubado. Isso pode ter acontecido também. Digo, eu já estava quase indo para a cama.”
“Não se importe em ir para a cama. Você estava na cidade esta tarde, não estava?”
“Claro que estava,” um dos homens disse, montando de novo. “Eu mesmo o vi. Usava aquele chapéu, também.”
“Calado, Dave,” disse o Xerife Barclay. “Você esteve na cidade, Jim?”
“Sim senhor, eu estive,” disse Trusdale.
“No Chuck-Sortudo? ”
“Sim senhor, eu estive. Eu andei daqui, tomei dois drinques, e então voltei para casa. Eu acho que foi no Chuck-Sortudo que perdi meu chapéu.”
“Essa é a sua história?”
Trusdale olhou para o céu de novembro acima. “É a única história que eu tenho”.
“Olhe para mim, filho.”
Trusdale olhou para ele.
“Essa é a sua história?”
“Eu disse, a única que eu tenho,” Trusdale respondeu, olhando para ele.

O Xerife Barclay suspirou. “Tá certo, vamos para a cidade.”
“Por quê?”
“Por que você está preso.”
“Ele não tem um cérebro nessa porra de cabeça”, um dos homens comentou. “Faz o pai parecer esperto.”

Eles foram para a cidade. Ficava há 6 quilômetros e meio. Trusdale foi na traseira do vagão mortuário, tremendo contra o frio. Sem se virar, o homem que segurava as rédeas disse, “Você queria estuprá-la, tanto quanto roubar o dólar dela, não é?”
“Eu não sei sobre o que você está falando,” Trusdale disse.

O resto da viagem continuou em silêncio, exceto pelo barulho do vento. Na cidade, as pessoas faziam fila na rua. No início elas estavam quietas. Então uma mulher velha em um xale marrom correu atrás do cortejo fúnebre, em uma espécie de mancado desajeitado e cuspiu em Trusdale. Ela errou, mas recebeu um respingo de aplausos.

Na prisão, o Xerife Barclay ajudou Trusdale a descer do vagão. O vento estava revigorante, e cheirava à neve. Erva Daninha crescia pela rua principal, em direção à torre de água da cidade, onde ela se empilhava, chacoalhando sobre a cerca de madeira.

“Enforquem aquele assassino de bebês,” um homem gritou, e alguém jogou uma pedra. Ela passou por sobre a cabeça de Trusdale e foi parar na laje do muro logo atrás.

O Xerife Barclay virou-se e levantou sua lanterna, inspecionando a multidão que estava reunida em frente ao mercado. “Não façam isso,” disse ele. “Sem atitudes tolas.”

O Xerife levou Trusdale pelo seu escritório, segurando ele pelo braço direito e entrou na cadeia. Lá havia duas celas. Barclay levou Trusdale até uma no final, à esquerda. Lá havia uma beliche, um banquinho e um balde de dejetos. Trusdale sentou-se no banquinho, e Barclay disse. “Não. Só fique em pé.”

O Xerife olhou ao redor e viu os homens contando vitória na porta.
“Vocês todos saiam daqui,” disse ele.

“Otis,” o que se chamava David disse, “E se ele atacar você?”
“Então eu dominarei ele. Eu o agradeço por fazer sua obrigação, mas agora você precisa se mandar.”

Quando eles se foram, Barclay disse: “Tire o seu casaco e dê pra mim.”

Trusdale tirou seu casaco de fazendeiro e começou a tremer. Por baixo ele não estava usando nada além de uma camisola e calças de veludo quase tão gastas que deixavam seus joelhos à mostra. O Xerife Barclay fuçou os bolsos do casaco e encontrou um maço de tabaco em uma página do catalogo da companhia de relógios R.W. e um velho bilhete de loteria que prometia o pagamento em pesos. Lá havia ainda um pedaço de uma pedrinha de mármore negro.

“É o meu mármore da sorte,” disse Trusdale. “Eu o tenho desde quando eu era criança.”
“Esvazie os bolsos da calça.”

Trusdale esvaziou. Ele tinha um centavo e três níquels e um recorte de jornal sobre a corrida de prata de Nevada, que parecia tão velho quanto o bilhete de loteria mexicano.

“Tire suas botas.”

Trusdale as tirou. Burclay olhou dentro delas. Havia um buraco em uma das solas do tamanho de uma moeda de dez cents.
“Agora as meias.”
Barclay virou-as ao contrário e largou-as de lado.
“Baixe suas calças.”
“Eu não quero fazer isso.”
“Ninguém tanto quanto eu gostaria de ver o que há ai, mas abaixe de qualquer jeito.”
Trusdale abaixou suas calças. Ele não estava usando cueca.
“Vire-se e abra as nádegas.”
Trusdale virou-se, agarrou suas nádegas e separou-as. O Xerife Barclay bufou, desconcertado, e introduziu um dedo no ânus de Trusdale. Trusdale gemeu. Barclay retirou seu dedo, desconcertado de novo, e enxugou-o na camisola de Trusdale.
“Onde está, Jim?”
“Meu chapéu?”
“Você acha que eu invadi seu rabo ou baguncei as cinzas em seu fogão procurando por um chapéu? Você se acha esperto?”

Trusdale vestiu suas calças e abotoou. Então ele permaneceu arrepiado e com os pés descalços. Uma hora antes ele estava em casa, lendo seu jornal e pensando sobre começar a acender o fogão, mas parecia que aquilo acontecera há muito tempo.

“Eu estou com seu chapéu em meu escritório.”
“Então por que você perguntou sobre ele?”
“Para ver o que você diria. O assunto do chapéu está resolvido. O que eu gostaria de saber de verdade é onde você guardou o dólar de prata da garota. Não está na sua casa ou em seus bolsos, ou dentro do seu traseiro. Você se sentiu culpado e jogou ele por ai?”
“Eu não sei nada sobre nenhum dólar de prata. Posso ter meu chapéu de volta?”
“Não. É uma evidência. Jim Trusdale, eu estou prendendo-o pelo assassinato de Rebecca Cline. Você tem alguma coisa a dizer sobre isso?
“Sim senhor. É que não conheço nenhuma Rebecca Cline.

O Xerife deixou a cela, fitando a porta, pegando a chave na parede e trancando-a. A fechadura gemeu quando ele girou o trinco. A cela geralmente era habitada por bêbados e raramente era fechada. Ele virou-se para Trusdale e disse, “Eu sinto muito por você, Jim. O inferno não será quente o suficiente para um homem que fez aquela coisa.”
“Que coisa?”
O Xerife foi embora sem responder.

Trusdale permaneceu na cela, comendo o grude da Mãezona, dormindo na beliche, cagando e mijando no balde, que era esvaziado a cada dois dias. Seu pai não viria visitá-lo, porque seu pai partiu de maneira tola aos seus oitenta anos, e agora estava sendo cuidado por um casal de peles vermelhas, um Siú e o outro Cheiene . Às vezes eles paravam em frente do balcão abandonado do deserto e cantavam hinos em harmonia. Seus irmãos estavam em Nevada, procurando por prata.

Algumas vezes as crianças vinham e paravam no vale do lado de fora de sua cela, tagarelando, “Enforcado, enforcado, venha aqui para baixo.” Algumas vezes homens paravam lá fora e ameaçavam cortar suas partes intimas. Uma vez, a mãe de Rebeca Cline veio e disse que ela mesma poderia enforcá-lo, se eles a permitissem. “Como você pôde matar meu bebe?”, ela perguntou por entre as barras da janela. “Ela tinha só dez anos, e era o aniversário dela.”
“Senhora”, disse Trusdale, ficando em pé no beliche o suficiente para olhar para o rosto que o fitava de baixo. “Eu não matei seu bebê e nem nenhum outro.”
“Preto mentiroso,” ela disse e foi embora.

Quase todos da cidade compareceram no funeral da criança. Até as duas prostitutas, que fecharam seu comércio no Chuck-Sortudo, vieram. Trusdale ouviu a cantoria de sua cela, enquanto sentava no balde no canto.

O Xerife Barclay telegrafou para o Forte Pierre, e após uma semana ou menos o juiz veio trotando em seu cavalo. Ele fora recentemente nomeado e era jovem para o trabalho, um cavalheiro com uma longa cabeleira loira que descia pelas suas costas como o Wild Bill Hickok . Seu nome era Roger Mizell. Ele usava pequenos óculos redondos, e em ambos os estabelecimentos, no Chuck-Sortudo e na Mãezona, mostrou-se como um homem com um olho nas damas, embora carregasse uma aliança na mão.

Não havia nenhum advogado na cidade disposto a defender Trusdale, então Mizell chamou George Andrews, proprietário do mercado, do pensionato e do Hotel Good-Rest. Andrew estudou dois anos no ensino superior, em uma escola de negócios do Leste. Ele disse que poderia servir de advogado de Trusdale apenas se o Sr. e a Sra. Cline concordassem.

“Então vá vê-los,” disse Mizell. Ele estava na barbearia, inclinado na cadeira e fazia a barba. “Não deixe a grama crescer sob seus pés.”
“Bem”, disse o Sr. Cline, após Andrews ter firmado seu acordo, “Eu tenho uma pergunta. Se ele não tiver ninguém para defendê-lo, eles poderão enforcá-lo?”
“Isso não seria justiça americana,” disse Andrews. “E embora nós ainda não sejamos um dos Estados Unidos, logo seremos.”
“Ele pode se esquivar disso?” Sr. Cline perguntou.
“Não, senhor,” Andrew disse. “Eu não vejo como.”
“Então cumpra com o seu dever e Deus lhe abençoe.” disse o Sr. Cline.

O julgamento durou uma manhã inteira de novembro e metade da tarde. Ele foi realizado no salão municipal, e naquele dia caíram flocos de neve tão finos como confetes de casamento. Nuvens de um cinza-ardósia sobrevoavam a cidade prevendo uma grande tempestade. Roger Mizell, que estava familiarizado ele mesmo com o caso, serviu tanto como promotor quanto como juiz.

“Como um banqueiro pegando um empréstimo dele mesmo e depois pagando a si mesmo,” um dos jurados ouviu-se dizendo durante a pausa para o almoço na Mãezona, e embora ninguém tenha discordado, ninguém sugeriu que era uma ideia ruim. Ele tinha uma certa grana, depois de tudo.

O promotor Mizell chamou meia dúzia de testemunhas, e o juiz Mizell não se opôs nenhuma vez à sua linha de interrogatório. Sr. Cline testemunhou primeiro, e o Xerife Barclay por último. A história que surgiu foi uma só. No meio dia do dia do assassinato de Rebecca Cline, estava acontecendo uma festa de aniversário, com bolo e sorvete. Muitos dos amigos de Rebecca estavam lá. Por volta das quatorze horas, enquanto as garotinhas brincavam de pregar o rabo no burro e de dança das cadeiras, Jim Trusdale entrou no Chuck-Sortudo e pediu uma dose de uísque. Ele estava usando seu chapéu de fazendeiro. Ele tomou o último drinque, e quando terminou pediu outro.

Teria ele, em qualquer momento, tirado o chapéu? Talvez tenha pendurado ele em um dos ganchos na porta? Ninguém podia se lembrar.

“Eu o vi apenas sem ele,” Dale Gerard, o barman, disse. “Ele era inseparável daquele chapéu. Se ele o tirou, ele provavelmente o deixou no bar ao lado dele. Ele tomou um segundo drinque, e então seguiu seu caminho.”
“O chapéu ficou no bar depois que ele partiu?” Mizell perguntou.
“Não, senhor.”
“Estava em um dos ganchos quando você fechou ao anoitecer?”
“Não, senhor.”

Em torno das quinze horas daquele dia, Rebecca Cline deixou sua casa no lado sua da cidade para visitar o farmacêutico na rua principal. Sua mãe tinha dito que ela poderia comprar alguns doces com seu dólar de aniversário, mas não poderia comer ainda, porque ela já tivera sua dose suficiente por um dia. Quando deu cinco horas e ela não havia retornado para casa, o Sr. Cline e alguns outros homens começaram a procurar por ela. Eles a encontraram no beco do Barker, entre o deposito de descarga e a área de descanso. Ela fora estrangulada. Seu dólar de prata tinha sumido. Foi apenas quando o pai enlutado tomou-a em seus braços que os homens viram o chapéu de abas largas de couro de Trusdale. Ele estava escondido embaixo da saia do vestido de festa da garota.

Durante a hora do almoço do júri, marteladas foram ouvidas de trás do deposito do palco, a menos de noventa passos da cena do crime. Era o barulho da forca sendo erguida. O trabalho foi supervisionado pelo melhor carpinteiro da cidade, cujo nome, apropriado o suficiente, era Sr. John House . Uma nevasca estava vindo, e a estrada para o Forte Pierre ficaria intransponível, talvez por uma semana, talvez pelo inverno inteiro. Não havia planos de manter Trusdale no calabouço local até a primavera. Não economizariam naquilo.

“Que maneira de construir uma forca,” disseram os moradores do vilarejo que vieram para assistir. “Uma criança poderia construir algo assim.”

Ele contou como uma corda operada por uma alavanca correria pelo alçapão, e como faria para se certificar que as roldanas untadas não falhariam na última hora. “Se você tem que fazer uma coisa como essa, você tem que fazê-la certo da primeira vez,” disse House.

Pela tarde, George Andrews colocou Trusdale na tribuna. Isso ocasionou alguns protestos dos espectadores, que o Juiz Mizell tentou conter, prometendo esvaziar a corte se os cidadãos não se comportassem.

“Você entrou no salão Chuck-Sortudo no dia em questão?” Andrews perguntou quando a ordem foi restaurada.
“Eu acho que sim,” disse Trusdale. “Se não fosse isso eu não estaria aqui.”
Houve alguns risos, que Mizell também reprimiu, embora ele mesmo estivesse sorrindo e não tivesse feito uma segunda repreensão.
“Você pediu duas bebidas?”
“Sim, senhor, eu pedi. Dois era tudo para o que dava meu dinheiro.”
“Mas você conseguiu outro dólar bem rápido, não foi, seu miserável!” Abel Hines disparou.
Mizell apontou seu malhete primeiro para Hines, então para o Xerife Barclay, sentando na fileira da frente. “Xerife, escolte aquele homem para fora sob a acusação de conduta desordeira, faz favor.”
Barclay escoltou Hines para fora, mas não o condenou por conduta desordeira. Ao invés disso, ele perguntou o que havia dado nele.
“Eu sinto muito, Otis,” disse Hines. “Foi ter visto ele sentando lá com sua cara deslavada espichada para fora.”
“Você irá para a rua de baixo e verá se John House precisa de alguma ajuda com o trabalho dele,” disse Barclay. “Não volte aqui até que seu serviço tenha terminado.”
“Ele tem toda a ajuda que precisa, e tá nevando forte agora.”
“Você não vai desmanchar por isso. Vá!”

Enquanto isso, Trusdale continuou seu testemunho. Não, ele não deixou o Chuck-Sortudo usando seu chapéu, mas não tinha percebido isso até que chegou em casa. Por ai, disse ele, ele estava cansado demais para andar por todo aquele caminho de volta até a cidade para procurá-lo. Além disso, já era de noite.

Mizell interrompeu. “Você está pedindo a esta corte para acreditar que você andou seis quilômetros e meio sem perceber que você não estava usando seu maldito chapéu?”
“Eu acho sinceramente, eu uso ele o tempo todo. Eu só deduzi que ele deveria estar lá,” disse Trusdale. Isso provocou outra rajada de risos.
Barclay voltou e tomou seu lugar perto de Dave Fisher. “Do que eles estão rindo afinal?”
“O idiota não precisa de um carrasco,” disse Fisher. “Ele próprio está dando o nó. Isto não deveria ser engraçado, mas é um pouco cômico, de qualquer jeito.”
“Você encontrou Rebecca Cline naquele beco?” George Andrews perguntou em voz alta. Com cada olho voltado para ele, ele havia descoberto um talento, até então escondido, para o drama. “Você a encontrou e roubou seu dólar de aniversário?”
“Não senhor,” Trusdale disse.
“Você a matou?”
“Não, senhor. Eu nem sabia quem ela era.”
O Sr. Cline levantou-se de sua cadeira e disparou, “Você fez isso, seu mentiroso filho da puta!”
“Eu não estou mentindo,” disse Trusdale, e foi quando o Xerife Barclay acreditou nele.
“Eu não tenho mais perguntas,” disse Andrews, e voltou para o seu lugar.
Trusdale começou a se levantar, mas Mizell ordenou que ele permanecesse sentado e respondesse mais algumas perguntas.
“Você vai continuar a insistir, Sr. Trusdale, que alguém roubou seu chapéu enquanto você estava bebendo no Chuck-Sortudo, e este alguém o pôs, foi até o Alley e matou Rebeca Cline, e o deixou lá para incriminar você?”
Trusdale estava em silêncio.
“Responda a pergunta, Sr. Trusdale.”
“Senhor, eu não sei o que significa ‘incriminar’”.
“Você espera nos fazer acreditar que alguém enquadrou você por este crime hediondo?”
Trusdale pensou, entrelaçando as mãos. No fim ele disse, “Talvez alguém o pegou por engano e o jogou fora.”
Mizell olhou ao longo da galeria extasiada. “Alguém aqui pegou o chapéu do Sr. Trusdale por engano?”

Houve apenas o silêncio, com exceção da neve castigando as janelas. A primeira grande tempestade do inverno havia chegado. Aquele era o inverno que os aldeões da cidade chamavam de “Inverno do Lobo”, porque os lobos desciam das colinas negras em alcateias para vascular o lixo.

“Eu não tenho mais perguntas,” disse Mizell. “E devido ao tempo vamos dispensar qualquer declaração final. O jure irá se retirar para considerar o veredito. Vocês têm três opções, cavalheiros – inocente, homicídio involuntário, ou assassinato em primeiro grau.”
“Comediante, parece mais com isso,” alguém comentou.
Xerife Barclay e Dave Fisher retiraram-se para o Chuck-Sortudo. Abel Hines foi com eles, espantando a neve dos ombros do seu casaco. Dale Gerard serviu-lhe as escunas de cerveja por conta da casa.

“Mizell pode não ter mais nenhuma pergunta,” Barclay disse, “mas eu tenho uma. O chapéu não importa. Se Trusdale a matou, como nós nunca encontramos aquele dólar de prata?”
“Porque ele se assustou e o jogou fora,” disse Hines.
“Eu não acho. Ele é estúpido demais. Se ele tivesse pego aquele dólar, ele teria voltado para o Chuck-Sortudo e bebido ele.”
“O que você está dizendo?” Dave perguntou. “Você acha que ele é inocente?”
“Eu estou dizendo que eu gostaria que tivéssemos encontrado aquela moeda.”
“Talvez ele o perdeu, por um buraco no seu bolso.”
“Ele não tinha nenhum buraco nos bolsos,” disse Barclay. “Só um em sua bota, e não era grande o suficiente para um dólar passar por ele”.

Ele bebeu um pouco de sua cerveja. As ervas daninha foram sopradas pela rua principal como cérebros fantasmagóricos sob a neve.

O júri levou uma hora e meia. “Nós logo votamos para enforcá-lo,” Kelton Fisher disse mais tarde, “Mas nos queríamos que parecesse descente”.

Mizell perguntou para Trusdale se ele tinha algo a dizer antes que a sentença fosse processada.

“Eu não consigo pensar em nada,” disse Trusdale. “Apenas que eu nunca matei aquela menina.”

A tempestade soprou por três dias. John House perguntou à Barclay quanto ele calculava que Trusdale pesava, e Barclay disse que ele deduzia que o homem tinha algo em torno de 39 quilos. House fez um manequim com sacos de aninhagem e encheu-o com pedras, pesando-o na balança de escalas do hotel, até que a agulha parasse nos 39. Então ele enforcou o manequim, enquanto metade da cidade parou ao redor do monte de neve e assistiu. Deu tudo certo durante a fase de testes.

Na noite da execução o tempo clareou. O Xerife Barclay contou para Trusdale que ele poderia ter qualquer coisa que quisesse para o jantar. Trusdale pediu por costeletas de porco e ovos, com fritas embebidas em molho. Barclay pagou do seu próprio bolso, então sentou em sua mesa limpando as unhas e ouvindo o tilintar da faca de Trusdale e do garfo sobre o prato de porcelana. Quando parou, ele entrou. Trusdale estava sentado em sua cama. Seu prato estava tão limpo que Barclay deduziu que ele deve ter lambido até a última gota de molho como um cachorro. Ele estava chorando.

“Algo está para acontecer comigo,” disse Trusdale.
“O que é, Jim?”
“Se eles me enforcarem amanhã de manhã, eu irei para o meu túmulo com costeleta de porco e ovos ainda na minha barriga. Ela não vai nem ter chance de fazer o serviço.”
Por um momento Barclay não disse nada. Ele estava horrorizado não pela imagem, mas porque Trusdale tinha pensado nisso. Então ele disse, “Limpe seu nariz.”
Trusdale limpou.
“Agora me escute, Jim, porque esta é sua última chance. Você esteve naquele bar no meio da tarde. Não tinha mais nenhuma pessoa lá então. Não está certo?”
“Eu acho que está.”
“Então quem pegou seu chapéu? Feche os olhos. Relembre. Veja!”
Trusdale fechou seus olhos. Barclay esperou, até que Trusdale abriu seus olhos, que estavam vermelhos pelo choro. “Eu não consigo lembrar se estava usando ele.”
Barclay suspirou. “Me dê seu prato, e passe aquela faca.”

Trusdale estirou o prato através das barras com a faca e o garfo sobre ele, e disse que desejava poder beber um pouco de cerveja. Barclay pensou sobre isso, então vestiu seu casaco pesado e caminhou até o Chuck-Sortudo, onde pegou um pequeno barril de cerveja com David Gerard. O coveiro Hines estava terminando um copo de vinho. Ele seguiu Barclay para fora.

“Grande dia amanhã,” disse Barclay. “Não há um enforcado aqui há dez anos, e com sorte não haverá outro por dez mais. Eu estarei aposentado então. Eu gostaria de estar agora.”
Hines olhou para ele. “Você não acha mesmo que ele a matou.”
“Se ele não o fez,” Barclay disse, “quem quer que tenha feito ainda está andando por ai.”

O enforcamento foi às nove horas da manhã seguinte. O dia estava ventoso e amargamente frio, mas a maioria da cidade saiu para assistir. O pastor Ray Rawles estava no andaime ao lado de John House. Ambos estavam tremendo, apesar dos seus casacos e cachecóis. As páginas da bíblia do Pastor Rowles ondulavam. Preso no cinto de House, também ondulando, havia um capuz caseiro, fiado com tecido tingido de preto.

Barclay levou Trusdale, as mãos algemadas atrás das costas, para a forca. Trusdale estava indo bem, até que ele diminuiu os passos, então começou a soluçar e chorar.

“Não façam isso,” disse ele. “Por favor, não façam isso comigo. Por favor não me machuquem. Por favor não me matem.”

Ele era forte para um homenzinho, e Barclay acenou para Dave Fisher vir e dar uma mão. Juntos eles forçaram Trusdale, torcendo, agachando e empurrando, pelos doze degraus de madeira. Uma vez lá ele sacudiu-se com tanta força que todos os três quase caíram e braços se esticaram para pegá-los se isso fosse acontecer.

“Fique quieto e morra como um homem!”, alguém disparou.

Na plataforma, Trusdale estava momentaneamente quieto, mas quando o Pastor Rowles começou o Salmo 51, ele começou a gritar “como uma mulherzinha com as tetas torcidas num espremedor”, alguém disse mais tarde no Chuck-Sortudo.

“Tenha misericórdia de mim, Oh Deus, segundo tua grande bondade,” Rowles leu, erguendo sua voz para ser ouvido por sobre os gritos do homem condenado. “Por tua grande compaixão, lava-me de toda a culpa e purifica-me do pecado.”

Quando Trusdale viu House pegar o capuz negro do seu cinto, ele começou a ofegar feito um cachorro. Ele sacudia a cabeça de um lado para o outro, tentando se esquivar do capuz. Seu cabelo voou. House seguiu cada movimento pacientemente, como um homem pretendendo domar um animal arisco.

“Deixe-me olhar para as montanhas,” Trusdale berrou. Catarro escorria por suas narinas. “Eu me comportarei se você me deixar olhar para as montanhas mais uma vez.”

Mas House apenas enfiou o capuz sobre a cabeça de Trusdale e puxou-o até os ombros trêmulos. Pastor Rowles estava terminando, e Trusdale tentou correr de cima do alçapão. Barclay e Fisher puxaram-no de volta. Lá embaixo alguém gritou “Segura Peão!”
“Diga amém,” Barclay disse para o Pastor Rowles. “Pelo amor de Cristo, diga amém”.

“Amém,” disse o Pastor Rowles, e se afastou, fechando sua bíblia com um “clap”.

Barclay acenou para House. House puxou a alavanca. O ferrolho untado retraiu e acionou a armadilha. Assim fez Trusdale. Houve um estalo quando seu pescoço quebrou. Suas pernas dobraram-se quase até o queixo, em seguida curvaram-se para trás. Gotas amarelas mancharam a neve debaixo de seus pés.

“Toma, desgraçado!” O pai de Rebecca Cline gritou. “Morra que nem um cachorro mijando num hidrante. Bem-Vindo ao inferno.” Algumas pessoas aplaudiram.

Os espectadores permaneceram até que o cadáver de Trusdale, ainda vestido com o capuz negro, foi colocado no mesmo vagão no qual ele tinha chegado na cidade. Então eles dispersaram.

Barclay voltou para a cadeia e sentou-se na cela que Trusdale havia ocupado. Ele sentou-se lá por dez minutos. Estava frio o suficiente para ver sua própria respiração. Ele sabia pelo que estava esperando, e eventualmente veio. Ele pegou o baldinho que estava coberto com a última cerveja e com o vomito de Trusdale. Então ele foi até o escritório e atiçou o fogão.

Ele ainda estava lá oito horas depois, tentando ler um livro, quando Abel Hines entrou. Ele disse, “Você precisa vir até a funerária, Otis. Há algo que eu quero te mostrar.”
“O quê?”
“Não. Você precisa ver por si mesmo.”
Então eles caminharam até a funerária e mortuária Hines. Na sala dos fundos Trusdale estava sentado numa placa de arrefecimento. Havia um cheiro forte de produtos químicos e de merda.
“Eles enchem as calças quando morrem desse jeito,” disse Hines. “Mesmo os homens que morrem de cabeça erguida. Eles não conseguem segurar. O esfíncter os trai.”
“E?”
“Chegue aqui. Eu acho que um homem em seu trabalho têm visto algo pior do que um monte de merda.”
Eles estavam no chão, vasculhando-o. Algo brilhou na bagunça. Barclay olhou mais de perto e viu que era um dólar de prata. Ele estendeu a mão e o tirou da merda.
“Eu não entendo isso,” disse Hines. “O filho da puta ficou trancado durante um bom tempo.”

Havia uma cadeira no canto. Barclay sentou nela tão pesadamente que ela emitiu um pequeno “woof”. “Ele deve ter engolido na primeira vez, quando viu nossas lanternas chegando. E cada vez que botava para fora ele limpava e engolia de novo.”
Os dois homens se encararam.
“Você acreditou nele,” Hines disse, por fim.
“De todo que eu sou, eu acreditei.”
“Talvez isso diga mais sobre você do que sobre ele.”
“Ele continuou dizendo que era inocente até o fim. Ele provavelmente ficará em frente ao trono de Deus dizendo a mesma coisa.”
“Sim.” Disse Hines.
“Eu não entendo. Ele estava indo para a forca. De qualquer maneira ele estava indo para a forca. Você entende isso?”
“Eu não entendo nem porque o sol nasce. O que você fará com aquele dólar? Vai devolver pra mãe e pro pai da garota? Seria melhor se você não o fizesse, porque…” Hines deu de ombros.

Porque os Clines sabiam o tempo todo. Todos na cidade sabiam o tempo todo. Ele era o único que não sabia. De tolo que era.

“Eu não sei o que vou fazer com isso,” disse ele.

O vento soprou, trazendo o som da cantoria. Estava vindo da igreja. Era hora do louvor. ▲

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